30 de mar. de 2021

Discurso de posse - Saulo Pessato

Certa vez, perguntei aos mestres que conselho inspirador dariam a um jovem aspirante a poeta, ainda inseguro dos seus trilhos. E Drummond assim me respondeu:

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.


Pessoa, corroborativo, quase não assumindo a mentira e o fingimento poético, completou:

Sentir? Sinta quem lê!

Foi assim que escolhi o trem — ou seria o comboio de cordas? — pelo qual seguiria viagem no universo da poesia, ainda que a insegurança estilística me levasse, vez por outra, a cogitar baldeações.

Como os discursos de posse, tais como as crônicas confessionais, têm, em seus olhos, um lustro de lágrima típico dos sensíveis, confesso que, ao vislumbrar o percurso que este texto pretende, quase me incito a saltar do vagão e caçar outra linha ou estação — mais por receio de ficar marcado por algum detalhe biográfico do que por qualquer cuidado em ser fiel àqueles mestres.

Seguirei, entretanto, com o plano de viagem, alternando janelas e paisagens, antes de tudo fiel a mim mesmo, na esperança de que meus compassageiros tenham ciência da distância entre minha vida e minhas palavras, como por certo compreendem a distância entre partidas e chegadas.

A poesia embarcou em minha vida quando embarcou a própria razão. Foi minha mãe quem a pegou pela mão e sentou-a bem do meu lado nos primeiros exercícios de redação escolar. Naqueles momentos, descobri a beleza das palavras quando bem organizadas e, nesse aspecto, Natalina Pessato, sem nunca haver terminado seus estudos ginasiais, nem provavelmente saber de Drummond ou Fernando Pessoa, penetrava surdamente no reino das palavras e me ajudava a encontrar os poemas à espera de serem escritos. Foi-me a primeira mestra.

Neta de imigrantes portugueses e italianos, o pai era carpinteiro e a mãe lavava para fora. Com poucos recursos, essa caçula de cinco irmãos, que precisaram trabalhar desde pequenos, tinha paixão por estudar. Não queria abrir mão do colégio. Então, aproveitava qualquer espaço do enxovalhado caderno e escrevia com um toco de lápis desapontado até nas capas e contracapas.

No final do primeiro ano primário, a professora prometeu um presente à melhor redação da classe e esperava premiar algum filho de fazendeiro ou bancário, que a esta época, para desespero das famílias tradicionais, frequentavam a mesma escola que os filhos dos pobres.

Acontece que foi a Pessato quem escreveu o melhor texto. A professora, desiludida, ressentida em ter que dar a mais valiosa nota à menina mais pobre, aquela em quem há alguns meses batera diante de todos e ameaçara reprová-la porque não tinha sequer no caderno a lição copiada, prometeu reler o texto e caçar problemas de grafia ou sintaxe que justificassem um desconto. Não os achando, de qualquer forma, retirou-lhe da nota seis décimos, atribuindo-os à caligrafia grosseira do lápis tosco.

Mais tarde, já no Ginásio, noturno, por causa do trabalho, Natalina inscreveu-se num concurso literário da instituição. Os concorrentes recebiam um número de participação e seus nomes seriam revelados somente na premiação.

Acontece que os julgadores, professores como a de antes, curiosos acerca do nome do texto vencedor, consultaram, em segredo, quem era o número 18. E, ao constatar que se tratava de uma menina pobre da sétima série, numa escola de tantos escolarizados e abastados até o Superior, decidiram mudar as regras e contemplar, com prêmios menores, os cinco melhores textos.

Natalina Pessato só soube do fato porque a amiga, Floripes, filha de um professor, testemunhou em sua própria casa a discussão e a decisão.

Apesar das humilhações escolares, físicas e psicológicas, das limitações familiares, carentes de incentivos, sua paixão frutificou. E, se às letras faltava espaço nas folhas dos cadernos, em seu coração sempre sobrava.

Um dia, já casada e mãe, e domesticada, Natalina ouviu na Rádio Nacional de Brasília um convite para o concurso Viva-Maria, de poesia. Isento de preferências e de elementos de exclusão, dessa vez, ela levou o prêmio: uma máquina de escrever Remington.

Houve um evento oficial no anfiteatro da Rádio em questão onde ela pôde subir ao palco e falar o seu texto vencedor. Sem ressalvas para garranchos. Sem tributos que paga o pobre para que nunca esteja à frente do rico.

A poesia, enquanto arte, é inclusiva e dignificante. Todo obstáculo ao talento e ao engenho é externo, mesquinho, parcial e são seus agentes as mesmas pessoas que promovem o desvio e a intolerância.

Natalina nunca foi escritora de livros publicados: sua poesia, sempre diária, assistia na construção da fala, na instrução dos filhos, página por página… Dela veio a primeira centelha que hoje incendeia neste discurso.

Também eu experimentei na vida alguns elementos de exclusão. Numa escala infinitamente menor, por motivos análogos ou não, conheci, na infância e na adolescência, o desprazer da supressão. E a arte, como elemento de extravasamento e sublimação, revelou-se também na minha escrita. No meu caso, por outro lado, o precoce reconhecimento de professores e diretores foi-me estímulo fundamental na procura da poesia.

O gosto por vinis coloridos de historinhas declamadas e ilustradas poeticamente matizaram a faísca. Além deles, uma obra, em especial, também cobra a sua influência em mim: A arca de Noé era um disco musical infantil, que trazia para crianças a poesia de Vinícius de Moraes nas vozes de grandes artistas da Música Popular Brasileira: Toquinho, Chico Buarque, Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Alceu Valença, Moraes Moreira e Elis Regina que jamais me deixavam sozinho.

Do Fundamental ao Médio, os ensinos de Rubem Braga, Carlos Drummond, Fernando Sabino, contos para gostar de ler, fizeram parte do caminho que a série Vagalume iluminou também para o gostar de escrever.

Mas foi no auge da adolescência, tempos de angústias essenciais, que todo espírito de exclusão e sensação de insuficiência foram louvados e corrigidos pelo poeta que homenageio como patrono neste discurso.


Mostro meu nojo à Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho…
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
e o animal inferior que urra nos bosques
é com certeza meu irmão mais velho!


Porque Augusto dos Anjos tem na dor a percepção flagrante de todos os sentidos; tem na morte a compreensão indefectível da vida; tem na aflição ególatra da finitude a consciência irônica das inevitabilidades universais.


Mas a alga usufrutuária dos oceanos
e os malacopterígios subraquianos
que um castigo de espécie emudeceu,
no eterno horror das convulsões marítimas
pareciam também corpos de vítimas
condenadas à Morte, assim como eu!


Na impossibilidade de se filiar a qualquer escola, Augusto dos Anjos fez do Eu a sua própria; e é na escola dos excluídos que quaisquer excluídos fazem escola.

Como um fantasma que se refugia
na solidão da natureza morta,
por trás dos túmulos, um dia,
eu fui refugiar-me à tua porta!

Entretanto, como já disse, ainda que aprenda com os mestres, sigo a jornada fiel a mim mesmo. Todo aprendizado é válido para enfrentar as tormentas, mas, tal como o viajante prefere o bom tempo para a viagem, a busca do excluído, no fundo, é sempre alguma amizade.

Então, troquei assentos e, vez por outra, vagões.

Após o curso de Letras, o contato aprofundado com outros nomes da Literatura fez-me entender que a mesma vida que nos dá recursos para lidar com os sofrimentos dá-nos também sabedoria para poder ressignificá-los. Encantado com o progresso artístico que tantos poetas alcançaram com o tempo, ponderava que versos escreveria Augusto se tivesse experimentado o envelhecimento dos tecidos.

Enquanto isso, eu provava estilos, testava formas e fórmulas, das medievais às modernas, porque os diálogos com os poetas que já tinham ouvido a voz da morte eram sempre receptivos e acolhedores e, tal como os músicos do antigo vinil, jamais me excluíam ou viravam-me as costas.

E foi assim, através da incansável busca por pertencimento, que finalmente encontrei a estação Poetrix. À parte os gestos e movimentos frequentes de passageiro-vagão, o sino, o apito, o vapor, o pouca-terra, eram, agora, vozes vivas no comboio.

Vivas às boas-vindas!

Para minha surpresa e contentamento, não apenas seus passageiros ajudaram-me com as bagagens, apresentaram-me o carro e o percurso, mas o próprio maquinista, idealizador da viagem, ofereceu-me no bilhete uma cadeira definitiva: a de número 22 desta Academia Internacional Poetrix. Com o gesto, pude sentir algo pouco sentido na vida: a alegria de fazer parte.

Não preciso dizer aqui o quanto isso é gratificante. O quanto me faz júbilo tornar-me compassageiro, confrade, conviva de arte viva; testemunha e também cúmplice do germinar Poetrix. Dedico essa emoção a todos os mestres da minha vida, em especial àquela primeira, que um dia, criança, testemunhei caminhar brevemente através do palco da Literatura e, ao menos uma vez na vida, conseguir ser reconhecida.

E agora, na Academia Internacional Poetrix, dedico-a a Augusto dos Anjos, por ensinar-me na angústia da incompletude a busca incansável da satisfação:

Entre o gozo que aspiro, e o sofrimento
de minha mocidade, experimento
o mais profundo e abalador atrito…
Queimam-me o peito cáusticos de fogo
esta ânsia de absoluto desafogo
abrange todo círculo infinito

Na insaciedade desse gozo falho
busco no desespero do trabalho,
sem um domingo ao menos de repouso,
fazer parar a máquina do instinto,
mas, quanto mais me desespero, sinto
a insaciabilidade desse gozo!

por Saulo Pessato

5 comentários:

José de Castro disse...

Gostei demais da fala do Pessato. Tem momentos que a gente não consegue e se rende à emoção. Linda a história de vida da mãe. Um significativo patrono para um acadêmico que tmabém já faz história na literatura. Parabéns, amigo Saulo Pessato... Você nos encanta com a sua capacidade de domar as palavras e fazerem-nas suas servas. Que tenha longa vida aqui conosco, juntos, celebrando a alegria de criar poetrix. Forte abraço...

Lílian Maial disse...

Saulo, as palavras - suas cúmplices - conseguiram exprimir o amor e admiração que vc nutre por sua mãe, que certamente influenciou seu gosto pelas letras e pelos excluídos. Seu patrono traduz bem isso. É um excluído admirado e invejado quase que veladamente.
Amei seu discurso de posse, tão doce e elegante quanto D. Natalina!
Que seus caminhos pelo Poetrix e a literatura como um todo seja motivo eterno de orgulho para a poetisa-mãe! Carinho!

Dirce Carneiro disse...

Li emocionei me identifiquei com sua mãe. Parabéns

Bethinha Relvas disse...

Vindo de você a sensibilidade nas palavras já são esperadas, mas que ternura ao falar de sua mãe, simplesmente lindo! Que assim seja sua trajetória pelo poetrix, linda e de muito sucesso. Parabéns poeta querido!

Jana Carvalho disse...

Seu discurso foi emocionante. Parabéns, Saulo! 💖