24 de set. de 2023

Coluna Literária - Ortografia de Anthero Monteiro por Dirce Carneiro



COLUNA LITERÁRIA DA AIP
Análise do Poetrix ortografia de Anthero Monteiro
Dirce Carneiro - Cadeira 26 - Patrona: Eliana Mora



ortografia

(Anthero Monteiro)


uma gaivota só
um til sobre a palavra
imensidão



O Poetrix do saudoso acadêmico português Anthero Monteiro é um dos mais celebrados poemas de todos os tempos no ambiente poetrixta.

Quando uma obra fala por si mesma as palavras sobre ela soam como pretensão e desafio.

Faço como homenagem a este que pertenceu ao rol dos pioneiros e foi membro de primeira hora da Academia Poetrix.

Minha leitura não esgota as possibilidades de análise diante de uma obra rica de sugestões.

MOMENTO HISTÓRICO:

Consta da Antologia 501 Poetrix Para Ler Antes do Amanhecer.
Na ficha técnica está escrito: “Melhores poesias publicadas por mais de 80 autores da primeira década da existência do Movimento Poetrix”. O Poetrix surgiu em 1999. O Livro data de 2011.

INTRODUÇÃO: Importante salientar que os poetrixtas da primeira hora não precisavam obedecer ao rigor métrico, nem à recomendação quanto ao uso de rimas.

O espírito de vanguarda também subvertia recomendações do manifesto quanto à independência dos versos, o que chamamos hoje de fatiamento de orações (ou frases) para compor o terceto. A independência dos versos evita que o terceto tenha as feições de prosa, o que acontece quando se desmembra uma oração ou frase em três partes, para formar o terceto.

Os que se notabilizaram fizeram Poetrix com um poder criativo admirável, de teor filosófico, humorístico e irreverente, lírico, de protesto ou de crítica.

Viviam a novidade poética e procuravam o verso que causasse espanto no leitor. Eu costumo dizer que eles perseguiam o Poetrix Eureka, buscavam uma sacada que tornasse seus poemas singulares e admirados pelos seus pares. Hoje essa admiração, nas redes sociais, seria manifestada por um comentário, o tão usado “Lindo!”; um comentário de texto bem escrito, ou o lacônico emoji de cara de espanto.

Com o tempo, novos minimalistas surgiram. Tercetos caíram no gosto de escritores. Até o haikai já se apresenta, na atualidade, como um terceto genérico.

Foi preciso ater-se à letra do cânone poetrixta para preservar a sua característica de poema original brasileiro minimalista, do contrário, seria, será e pode ser confundido com os mais dos mesmos tercetos existentes. Para isso, a Academia Internacional Poetrix aprovou o documento Diretrizes, em 2022. Uma atualização dos preceitos já existentes com a qual a AIP pretende manter a identidade do Poetrix, com todas as suas características, que fazem dele um poema singular, diferenciado, original.

Feitos os esclarecimentos, vamos ao poema de Anthero Monteiro:



O TÍTULO–ortografia (escrito em letras minúsculas)

Sendo o título elemento obrigatório no Poetrix, este se reveste de primordial importância. É o cartão de visitas do poema, o convite para a intimidade dos significados e para atravessar as entranhas do poema.

Ortografia sugere o ato de escrever certo. É sobre isto que o eu poético discorre ao observar o voo de uma gaivota. Escrever certo, na vida, na escrita...

Já temos aqui uma subversão, a modernidade do título escrito em letras minúsculas.

1º. Verso:

uma gaivota só

Gaivota é ave que voa em grupo, assim como as andorinhas, que voam em bando. Descrevem, no seu voo, o formato de um V, como o símbolo matemático menor. No caso das andorinhas, uma vai na frente, servindo de guia e vão se revezando. Tratando-se de gaivotas, o formato do voo em V serve para que as da frente amenizem o esforço das de trás e assim economizem energia, por causa da ação do vento. Há também o revezamento. Assim, conseguem voar longas distâncias e poupar a frequência cardíaca.

A gaivota do poema voa só, faz um voo solitário. Ganha a mais alta altitude e se escreve no espaço intamanhável. Apartou-se do bando. Assumiu o protagonismo do seu voo, ganhou distância das demais, até se tornar um sinal miúdo, alcançado pela visão humana.

Tendo-se assumido uma ave de altos voos, apartada do bando, torna-se solitária. Significa que ela tem a capacidade de se orientar sozinha. É senhora do seu voo, do seu destino e faz a sua escrita à sua maneira.


2º. Verso:

um til na palavra

O til é o arremate das palavras. A gaivota, ao longe, se inscreve no espaço como sugestão de asinhas miúdas.Quanto mais longe, mais se aproxima da perfeição, a palavra acabada.

3º. verso:

imensidão

Está pronta a ortografia, o poema se fecha com a gaivota escrita no espaço imenso, como um sinal miúdo, o til, alcançado pela visão. Arremata-se a palavra, sobre ela o til, miúdas asas colocadas, o último signo alcançado pela visão humana, uma gaivota que se perde da nossa vista, no seu voo solitário.

Temos duas dimensões: O miúdo e a infinitude.

Assim é a gaivota ganhando o infinito, um desenho miúdo que a vista humana arremata com um til, visão de asinhas no limite do que se pode alcançar a olho nu.

CONCLUSÃO: O que estaria a cismar o eu poético a observar a trajetória da gaivota até ser um quase nada no espaço intamanhável?

Já de início, temos a sugestão de uma quebra de padrões: o título todo escrito em letras minúsculas.

O voo da gaivota é uma escrita, uma linguagem, um desenho. Nesse aspecto, podemos dizer que temos uma metalinguagem. O eu poético fala de fazer do seu jeito e de voar independente de regras, para tanto segue só: quem tem asas para acompanhá-lo?

Prestes a se perder de vista, assemelha-se a um sinal miúdo, o signo gráfico til, que colocamos como arremate nas palavras necessárias, no poema é a palavra imensidão. Nas pinturas, representa-se pássaros ao longe, com o til, aves resumidas nas suas asinhas.

A gaivota apartada do bando, que por voar nas mais altas altitudes, é um ser solitário, não anda em bandos nem precisa que outros lhe digam o rumo a seguir. No final da sua trajetória, seu ser se resume ao quase nada de asinhas minúsculas, como o til. O ser é algo miúdo na imensidão.

Há outras sugestões no poema.

Ser miudeza no meio da multidão.

O poema também nos remete à pequenez humana diante do Universo. Também sobre a Terra, apenas um minúsculo ponto de luz suspenso na galáxia.

Ou seríamos todos nós - o arremate da criação - o til na palavra imensidão, o fim da palavra a se perder no infinito?





24 comentários:

Pedro Cardoso disse...

Oi Dirce, o quê você quer que eu diga? Eu preciso dizer alguma coisa? Acho que não. Você já disse tudo, tudo que eu gostaria de ter dito. Adorei o seu voo! Pior, ele me levou para longe, bem longe... Obrigado por esse presente, por essa leitura, por esse carinho pelo amigo e poeta, que tanto nos faz falta... E viva a poesia!!! E viva a Crítica Literária, que nos permite entender melhor os poemas e as loucuras do outro. Um grande abraço, minha irmã.

Dirce Carneiro disse...

Caro poeta Pedro Cardoso. Suas palavras mexeram com minhas asas. E quando a arte nos leva para bem longe, nos faz viajar e voar, é o melhor dos mundos.
Que bonito você me chamar de irmã, é um carinho, um verso, um laço entre poetas. E tem o liame das Gerais...Gratidão irmão...

Bianca Reis disse...

Excelente artigo, por trazer uma análise impecável de um poetrix maravilhoso, enquanto pontua a evolução do gênero. Sempre bom conhecer mais a fundo a história do poetrix. Parabéns, Dirce.

Anônimo disse...

Seguindo a saga iniciada pelo Pedro Cardoso, Dirce saiu-se muito bem, fazendo uma bela análise crítica do poetrix “hors concours” do Anthero Monteiro. Ele teria ficado muito feliz com sua avaliação. Foi um prazer ler é um aprendizado! 👏👏👏

Anônimo disse...

Lilian Maial aí em cima!!👆

Dirce Carneiro disse...

Muito grata pelo seu comentário Bianca Reis. É bom saber que no trabalho houve mais conhecimento agregado juntamente com a análise em si.
Temos percebido que os comentários agregam muito às postagens do Blog. Sejam de Poetrix, teoria, análise ou entrevistas.

Dirce Carneiro disse...

Lílian Maial, o seu comentário traz a convicção de que devemos escrever mais e mais não importa o desafio a ser vencido. Você foi cirúrgica ao classificar Ortografia de Anthero Monteiro como "hors concours"
Já não se trata do ser ou não ser mas sim de termos a arte em descobrir seus significados.

José de Castro disse...

Oi, Dirce. Você fez uma análise bem perspicaz desse poetrix clássico do saudoso Anthero Monteiro, esse poeta que se fundiu à imensidão. Você lançou um pouco mais de luz sobre a nossa compreensão desse poetrix tão singular. E o fez de forma brilhante. Gratidão, amiga! Parabéns!

Andréa Abdala disse...

Belíssima construção, Dirce!. Esse poetrix é um dos melhores que eu já li. Temos aí um texto literário que vai ficar na história da nossa Coluna.

Dirce Carneiro disse...

José de Castro sei do seu rigor na leitura de trabalhos e o seu comentário reflete o acerto na escolha dessa criação de Anthero Monteiro, a quem eu quis homenagear. Gratidão poeta.

Dirce Carneiro disse...

Andréa Abdala muito grata pelo seu comentário e também pelo cuidado na publicação procurando obter o melhor resultado na apresentação do texto no Blog. Uau, poeta e Presidente da AIP- "um texto para ficar na história da Coluna" é tudo que os colunistas que ousam escrever aqui almejam. Os que já foram publicados e outros que virão farão história porque a Coluna Literária foi uma feliz ideia.

Lorenzo Ferrari disse...

No dia que Anthero se foi lembrei dele na Academia com este Poetrix. Também acho maravilhoso e fico triste que hoje em dia não seria mais considerado Poetrix porque ele é um exemplo gritante de fatiamento. Isso não tira a beleza dele como também até ser votado e aprovado sempre defendi que o fatiamento não tornava algo que deixaria de ser. Sempre temos que lembrar que a bula, diretrizes ou qualquer outro regramento é feito para conseguir uma excelência que por vias normais não aconteceria. Serve de guia e norte para se chegar naquele ponto de texto eterno. No fundo a obra prima é isso. Ser eternizada. Isso nos leva a um dilema. Dirce coloca para lembrarmos que existe exceção? Porque todos votaram em algo que deixaria algumas coisas de fora reconhecidamente, como algo como colocado, atemporal? Antes que falem não sou favorável a voltar atrás. Na verdade, não estamos voltando atrás porque justamente neste livro 501 poetrix foi o primeiro momento que a bula foi registrada em livro e ela mesma dizia que o Poetrix não é frase de caminhão. Era outro momento. Não existia Academia. Não existia nem um regramento completo. E acho sim que o 501 foi um marco, mas o grande erro deste livro não foi aplicar o próprio regramento que propunha. Com isso tudo posto volto a me questionar. Uma obra prima será sempre obra prima. Uma pena que esta que antigamente chamávamos de Poetrix com P, hoje tem que ser chamado de belo terceto...

Dirce Carneiro disse...

Caro acadêmico Lorenzo Ferrari.
Reconheço os percalços do Poetrix na sua trajetória que no dia 26 de setembro de 2023 faz 24 anos.
Sempre houve regramentos que nem sempre foram seguidos.
Para os poetrixtas da primeira hora havia o entusiasmo de escrever sobre a novidade, o que era feito sem haver a avaliação rígida dos pares, quanto a aspectos da forma preconizada em Manifesto ou na Bula Poetrix, tradicional e histórico documento normativo.
Consta do presente trabalho as ponderações sobre isso quando defini o MOMENTO HISTÓRICO e nas considerações feitas na INTRODUÇÃO.
Penso que as DIRETRIZES, documento aprovado em 2022, sinaliza para o futuro e não pretende apagar o passado.
Houve um consenso, na Academia, no reconhecimento crítico de tudo o que foi feito na história do Poetrix. A gestão passada deliberou sobre isso.
Se este reconhecimento da trajetória do Poetrix estiver sendo contestada, isto deve ser tratado institucionalmente.
Anthero Monteiro e a maioria dos poetrixtas da primeira hora foram alçados como acadêmicos quando da criação da Academia.
Os novos acadêmicos devem se candidatar e submeter-se ao voto dos membros, como foi o meu caso e os novos membros eleitos em 2021.
Digo isso para concluir que o seu entendimento tem algo de equivocado, porque entendo que o apagamento do passado anula também a condição de poetrixtas acadêmicos, assim considerados pela sua trajetória no Poetrix, que se tornaram os membros fundadores da AIP: se não escreveram Poetrix, então não eram poetrixtas e não poderiam ser acadêmicos fundadores da Academia.
É diferente a abordagem de um Poetrix histórico e a abordagem de um Poetrix publicado atualmente, porque agora há a conscientização da necessidade de distinguir o Poetrix de outros tantos tercetos existentes.

Dirce Carneiro disse...

Faço mais um adendo à resposta do comentário de Lorenzo Ferraz. É sobre o conceito de frase de caminhão. O que significa frase de caminhão? Se for piada de mau gosto concordo que não deva estar presente num poema. Se for afirmação preconceituosa também não seria adequado num verso. Se for trocadilho de lugar comum tampouco serve à poeticidade. Novamente pergunto o que é frase de caminhão. Reproduz verso de poema, ditado popular, conceito filosófico de domínio público? Mesmo que fosse, em poemas autorais não se deve repetir frases já criadas mas sim versos de autoria própria.
Que se afaste qualquer preconceito quanto à cultura popular.
Esclarecendo que nas Diretrizes aprovadas em 2022 não consta esta menção.

Lorenzo Ferrari disse...

Bom Dirce vc sabe muito bem que consta na bula que foi nosso regramento por 12 anos .

Dirce Carneiro disse...

Pois é...caro acadêmico Lorenzo.
Na Academia Internacional Poetrix, após a aprovação, em 2022 das Diretrizes, já não se fala na Bula como documento a seguir na atualidade.
A Bula Poetrix e outros textos produzidos ao longo dos 24 anos são documentos históricos e valiosos para consulta aos estudiosos do Poetrix.

Dirce Carneiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marilda Confortin disse...

Dirce, fiquei até emocionada. Essa é a terceira vez que leio seu texto desde que foi publicado e ainda não encontro palavras para dizer o quanto gostei. Anthero ficaria apaixonado como eu fiquei. Parabéns, Dirce. Teu olhar é amplo e tua prosa poética é belíssima. Escreva mais análises. É um aprendizado precioso.

Dirce Carneiro disse...

Opa, Marilda. Assim eu me sentirei um pingo na palavra tímida. Espero também sua análise, pelo que conheço das suas interpretações você a fará lindamente. Gratidão por esta bela surpresa.


Dirce Carneiro disse...

Num dos comentários grafei o nome Lorenzo Ferraz. O certo é Lorenzo Ferrari. Coisas do corretor.

Francisco José disse...

Belíssima composição, Dirce... De tão completa, é mais que uma síntese. É um vívido retrato analítico do momento único de um poetrix eterno.

Dirce Carneiro disse...

Muito grata Francisco, foi um exercício prazeroso.

Diana Pilatti disse...

Eu adoro este poetrix e gostei muito da sua análise.

Dirce Carneiro disse...

Feliz por você ter gostado Diana Pilatti. Sei da sua Poesia, tão moderna e singular. Seu comentário muito me gratifica e incentiva. Gratidão.