11 de mar. de 2022

Processos criativos - por José de Castro


“A criatividade consiste em ver o que todo o mundo vê e pensar o que ninguém ainda pensou.”
(Szent-Gyorgyi, Prêmio Nobel de Química)

Antes de tudo, uma observação. Esse texto não foi escrito especificamente para poetrixtas. Apresenta estratégias que utilizo para oxigenar o meu processo criativo e caminhos aconselhados por alguns autores da área. As dicas apresentadas podem ser transpostas para o universo do poetrix. Afinal, criar é inerente ao ser humano, independentemente do gênero literário. Aqui e ali, procuro estabelecer nexos com o poetrix.

Já ouvi pessoas dizerem que não têm criatividade. Bobagem. Dentro de todos nós há uma centelha criativa. Resta-nos, apenas, dar o polimento para ela brilhar.

Podem ocorrer bloqueios de natureza variada ou períodos em que estamos sobrecarregados com tarefas descoladas do ato criativo; ocupações domésticas ou atividades profissionais diversificadas que nos tomam o tempo.

Outras vezes, disponíveis para escrever, sentimo-nos sem motivação ou travados, sem inspiração, como se diz. O que fazer então?

Se você está com tempo livre para escrever e as ideias não vêm, aconselha-se experimentar situações favoráveis ao desbloqueio.

Se o objetivo é escrever em determinado gênero, poesia ou prosa, procure algum livro de autora ou autor preferidos. A leitura de textos literários é sempre inspiradora. Aos poetrixtas, aconselho procurar antologias publicadas pelo antigo Movimento Internacional Poetrix, hoje substituído pela Academia Internacional Poetrix - AIP, idealizada em 2020 por Goulart Gomes, criador do poetrix. Inscrevam-se no grupo Poetrix, do facebook, onde encontram-se bons poetrix, alguns com imagens (grafitrix). Outra dica: visite o blog da AIP. Além de textos de teoria literária, terá bons poetrix para degustar. Acesse o link 1 nas referências.

Comigo esse processo de ler autoras ou autores diversificados funciona. Embarco no texto e ideias análogas ou contrastantes sempre me vêm. É comum eu ler um poema e, em seguida, escrever outro, como uma espécie de “resposta” ao desafio. É uma forma de dialogar com o outro. Intertextualidade. Experimente. Se não funcionar, pelo menos você leu um bom texto.

Leituras podem nos inspirar tanto para a poesia quanto para a prosa. Surgem-nos ideias, não só de poemas, mas também para prováveis contos, crônicas ou até mesmo para novela ou romance.

Quem participa, como eu e outros acadêmicos da AIP, de grupos de ciranda, vivenciará o desafio de escrever poetrix temáticos. A vantagem é que ali estão autores e autoras em quem podemos nos inspirar. É uma experiência enriquecedora, pois acompanhamos, momento a momento, diferentes processos criativos. Criar é provocar a inspiração. Escrever poetrix temático é uma dessas formas de provocação.

Ítalo Calvino, teórico italiano, afirmou que algumas de suas obras surgiram a partir de imagens. Esse é um bom caminho para se encontrar “assuntos”. Gosto de procurar fotos na internet, aleatoriamente, como um passeio. Podemos também selecionar fotos de temáticas específicas. Com certeza, alguma imagem vai nos chamar a atenção, tornando-se o gatilho disparador do nosso processo criativo.

Certa vez, uma amiga enviou-me uma foto de uma mulher num lugar ermo, árido, saindo de uma moldura. Assim que vi a foto, veio-me um poema. Imaginei aquela mulher fazendo uma confissão sobre o que representava sair da moldura. A sociedade costuma ver a mulher restrita a espaços, enquadrada em certos papéis. Dei voz à sua revolta contra o modelo aprisionador e rotulante da mulher em um mundo machista. O poema traz a força das palavras de quem não se vê mais enquadrado em nenhuma moldura. Por isso, intitulei o poema de “Fora da tela”, no meu livro para adultos, Apenas Palavras (CASTRO, 2015). A foto e o poema estão no link 2 das referências.

Noutra ocasião, vi a foto de uma mulher africana em um rio, encurvada, lavando panelas de ferro. Ela trazia às costas, na capulana, um bebê dormindo. Havia o contraste entre as fortes cores de suas vestes e o reflexo das águas e das panelas. De imediato, veio-me o poema “Canção de mãe na beira do rio”, uma canção de ninar. Nele, a mulher entoa palavras a expressarem seu esmero em extrair do aço das panelas o brilho das estrelas mais belas para iluminar os sonhos do filho.

Numa live em que declamei esse poema, a professora que me entrevistava encantou-se com ele. Sendo compositora, disse-me que iria musicá-lo. Estou no aguardo. Quem quiser conhecê-lo, procure no meu livro Um livro, um castelo (CASTRO, 2018). Ou veja a foto e o poema no link 3 das referências.

Um dia, aconteceu-me algo interessante. Uma amiga, Angélica Vitalino, assessora do projeto Rio da Leitura, Parnamirim/RN, o qual engloba uma rede de mais de 40 bibliotecas escolares, procurou-me e me fez um convite. O projeto homenagearia trabalhadores e trabalhadoras de várias profissões, mas ela não havia encontrado poemas sobre parteira e nem coveiro. Perguntou-me se eu poderia escrevê-los. Como gosto de desafios, aceitei. Poemar sobre parteira não foi difícil. Afinal, são mulheres fortes e dedicadas. Encaram com seriedade e amor a missão de ajudar mães a trazerem filhos à luz. Mas, e o coveiro que atua no polo oposto ao do nascimento? Qual seria o enfoque? Fui pesquisar fotos. Encontrei uma bem significativa: um homem de aparência rude, queimado de sol. Apoiava-se numa enxada, ao lado de uma cova recém-aberta. Encarava a câmera, olhar forte, penetrante. Resolvi que ele “conversaria comigo”, me chamaria de “Seu moço”… E me explicaria o seu ofício, como era viver entre campas, diariamente a enterrar todo o tipo de gente. Numa linguagem cadenciada, coloquial e filosófica, ele narra a sua visão sobre o ritual de passagem chamado morte. Assim, mais uma vez, a partir de uma imagem, nasceu outro poema: “Coveiro”, inédito em livro.

Eu teria inúmeros depoimentos semelhantes a esses. Poderia falar de vários poemas inspirados em imagens que me ajudaram soltar a imaginação e dar vida, voz e ação a personagens mulheres, homens e crianças. E até a animais. Também já criei inúmeros poetrix a partir de imagens.

Agora, mais uma observação sobre o meu processo criativo: jamais me limito a um único gênero, seja poesia ou prosa. Inquieto, escrevo de tudo: conto, miniconto, crônica, humor, haicai, aldravia, poetrix, parlenda, trava-línguas, tautograma, cordel, além de histórias infantis. Acredito que a busca de variadas formas de expressão aprimora o processo criativo; não ficamos estagnados e nem aprisionados a uma só opção. Aconselho esse caminho como terapia de multicriação.

Outra coisa. Gosto de me inspirar em músicas, principalmente instrumentais, que têm o dom de ir fundo e cavoucar nossos baús secretos, trazendo à tona tesouros do subconsciente. Experimente. Há chances de funcionar, pois a música nos faz viajar, leva-nos a vivenciar sensações favoráveis à criação.

Por vezes, meu processo criativo começa com uma só palavra, com as possibilidades que ela abre. Como nos diz a metáfora da “pedra no pântano”, do escritor italiano Gianni Rodari, que já recebeu o Prêmio Hans Christian Andersen. Da mesma forma que uma pedra lançada em um pântano o altera, também uma palavra atirada à mente produz “ondas de superfície e de profundidade”, provoca lembranças, analogias e outras reações. (RODARI, 1982, p. 14). Fico, então, a brincar com ela, faço-a dialogar com outra, pois palavra puxa palavra. E me divirto com a sonoridade que as palavras têm. Extraio confissões delas e descubro quais os segredos que podem me contar. Invento poemas e histórias. Também o poetrix é um bom campo para se explorar a riqueza semântica das palavras. Experimente atirar a sua “pedra palavra”.

Como escrevo também para o público infantil, sempre coloco algum tempero de humor, seja na poesia ou na prosa. Gosto de perguntar e convidar as crianças para a aventura que está diante dos seus olhos.

Com adultos procuro ser mais reflexivo e, muitas vezes, trabalho na perspectiva da busca e de indagações sobre a vida. Nos textos ou poemas cabem tristeza, melancolia e ares de espanto diante do mistério que é a nossa existência. Podemos lidar com emoções fortes, escrever de maneira mais solta, arriscar textos picantes e sensuais, sem apelações. Tudo isso desprovido de preocupações e cuidados que devemos ter quando escrevemos para crianças ou para adolescentes, seres ainda em formação.

Agora, trago reflexões sobre quatro papéis (ALENCAR, 2000, p. 37) que, num processo criativo, precisamos vivenciar. O primeiro: “o explorador da ideia”. É o momento de se arriscar pelos caminhos desconhecidos, sem medo. Recomenda-se a técnica da tempestade cerebral ou chuva de ideias. Depois de muita aventura criativa é que virá o “o juiz da ideia”. Nunca julgue uma ideia no nascedouro. Primeiro, explorar, depois julgar para escolher as melhores propostas. Na sequência, surge “o artista da ideia”. Vamos enfeitá-la para que tenha forma atraente. Finalmente, vivencie “o guerreiro da ideia”. Se você acredita na ideia, não a engavete. Mostre-a ao mundo.

Já concluindo. Tereza Amabile, citada no livro “O espírito criativo” (GOLEMAN e outros, 1992, p. 25) afirma que a criatividade acontece como num refogado de carne e legumes. O primeiro ingrediente é a “proficiência em alguma área”, pois a criatividade não opera no vazio. O segundo ingrediente é a “capacidade do pensamento criativo”. Funciona como o tempero básico, o dom de imaginar possibilidades diversas. Finalmente, o ingrediente que faz cozinhar a criatividade é a paixão. Feito o fogo sob a panela “...aquece tudo, mistura os sabores e faz o tempero penetrar nos ingredientes básicos…”. E assim produz-se um refogado criativo saboroso.

Como podem observar, existem inúmeras estratégias para se alavancar um processo criativo. São oportunidades de descoberta para cada pessoa. Isso depende da visão de mundo, do repertório, mas, principalmente, do objetivo e do foco da escrita. É necessário que se tenha coragem de ousar, aventurar-se e descobrir novas trilhas. Cada um descobrirá o que mais o atrai para se inspirar e voar nas asas da imaginação.

O que você não deve é afirmar e reafirmar que não é criativo. Na maioria das vezes, o que acontece é … preguiça… Então, arregace as mangas e… ao trabalho! Há poetrix a serem criados. Existem personagens lhe esperando, emolduradas em fotos e telas. Coloque-se na perspectiva delas. Traga-as para fora da tela e faça-as revelar segredos e contar suas histórias de vida. Extraia delas tudo o que puder a sua imaginação. Não há limites. Os leitores te agradecerão o presente. Lembre-se: criar é uma forma de a gente se recriar, de se reinventar e de se fazer novo a cada dia. Boas criações!

*José de Castro, cadeira 11 da AIP, patrono Paulo Leminski.

Referências
ALENCAR, Eunice Soriano de. O processo da criatividade: produção de ideias e técnicas criativas. São Paulo: Makron, 2000.
CALVINO, Ítalo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CASTRO, José de. Apenas palavras. Natal: CJA, 2015.
CASTRO, José de. Um livro, um castelo. Recife: Bagaço, 2018.
GOLEMAN, Daniel; KAUFMAN, Paul; RAY, Michael. O espírito criativo. São Paulo: Cultrix, 1992.
GUTIERREZ, Francisco. Linguagem total: uma pedagogia dos meios de comunicação. São Paulo: Summus, 1978.
RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. São Paulo: Summus, 1982.
RODARI, Gianni. O livro dos porquês. São Paulo: Ática, 1996.

LINKS

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2 comentários:

Regina Lyra disse...

Muito bom seu texto, José de Castro.
Seguia um caminho semelhante, até a pandemia.
Espero reencontrar-me.
Abraços poéticos.
Regina Lyra

Dirce Carneiro disse...

Um ótimo artigo sobre Processos Criativos.
Texto longo? Sim,de bastante conteúdo, informações necessárias para um trabalho sério.