NA TRILHA DA POETICIDADE DO OUTONO: UM
PERCURSO PELOS POETRIX DE JOSÉ DE CASTRO
Por Cleusa Piovesan, AIP, Cadeira número 27.
Os “Seis Poetrix para o Outono”, de José de Castro, chamaram minha atenção pela intertextualidade que percebi em relação a outros poemas, a textos e obras de autores e de artistas renomados, e também a obras da mitologia. Por isso decidi vasculhar minha memória literária para entrelaçar os fios poéticos que me auxiliassem a interpretar, artisticamente, os poemas desse autor.
Os seis poetrix que analiso dialogam com obras de vários autores que admiro e que demarcam meu lugar como estudiosa das artes em geral, razão pela qual atrevo-me a escrever esta crítica literária.
Aqui apresento as minhas conjecturas, que podem não se coadunar com as de outrem, porque a poesia é assim, desconstrói nosso “horizonte de expectativas" e alinha-se com o que nos apresenta sentido, relacionada a nossas vivências e experiências, algo subjetivo.
Como poeta posso dizer que se um poetrix não for explorado com um olhar poético, vendo além das aparências, extrapolando a concretude do texto, não há como extrair reflexões ou mesmo interpretá-lo em sua gama de significações, por se tratar de um gênero minimalista em que poucas palavras têm de condensar um vasto universo semântico.
SOPRO DE OUTONO
Pouco importa
Abraço o descaminho
Sigo o vento, folha morta
No poema “Sopro de Outono”, José de Castro me reportou a Walt Wittmann que contempla “regatos correndo pelo outono” (no seu poema “Regatos de Outono”, do livro “Folhas de Relva”).Aqui, os outonos correm através de imagens que evocam um dia em que as folhas voam e criam um tapete multicolor a enfeitar os caminhos. Indeciso, o eu lírico solta-se ao sabor do vento e segue sem rumo, à espera do destino traçado desde seu primeiro sopro de vida.
Também há intertexto com o "sopro divino" que, segundo algumas doutrinas religiosas, representa a gênesis de nossa existência. E José de Castro retrata "as duas pontas da vida" ao encerrar o poetrix com a expressão "folha morta". Os versos ainda me reportam ao personagem Bentinho, o Dom Casmurro, de Machado de Assis, em sua inútil tentativa de purgar-se dos erros e das decepções do seu passado. O estilo do autor revela-se a cada verso, compostos com a intencionalidade de evocar diálogos poéticos, permitindo aos leitores uma multiplicidade de interpretações, fazendo alusão a verso de Paul Verlaine, em “Canção de Outono”.
FIANDEIRO
Desfio as tranças do outono
Monótono o dia escorre
Coleciono fios de neve
Em “Fiandeiro” há um eco da Ilíada, de Homero, pois vejo Penélope, em dias de angústia, tecendo o manto à espera de Ulisses, gastando os anos de sua juventude na monotonia do faz e desfaz, tecendo também a esperança do retorno do seu amado a Ítaca.
A fiandeira amargurou outonos, assim como o eu lírico do poetrix “Fiandeiro”, em que os dias escorrem e derramam a neve nos cabelos, denunciando longa espera ou amarga solidão. Ao mesmo tempo, evidencia a falta de pressa que vem da sabedoria que os outonos vividos propiciam.
Um outro texto com o qual é possível fazer analogia nesse poetrix é “A moça tecelã”, de Marina Colassanti. A tecelã teve a vida que desejava, mas ao se sentir insatisfeita e aprisionada pelo personagem que teceu, desmancha a tecitura e volta à sua essência primeira, fugindo de tecer infinitamente os desejos do homem que criou para lhe servir de companhia. O primeiro verso do poetrix nos sugere essa possibilidade de "desfiar as tranças" da vida e refazê-la sob o poder de nosso livre arbítrio.
NAVEGOS
Águas lépidas
Folhas_barquinho seguem
Na pele do rio, outono.
Em “Navegos”, é como se embarcássemos também na poesia de Guilherme de Almeida, que desliza seu inocente "barquinho de papel" por águas “nunca dantes navegadas". Aqui, o poetrixta traz uma construção mental que evoca a imagem do barquinho, como uma criança que navega na imaginação e faz uma folha deslizar pelo rio feito uma embarcação para seus sonhos, que seguem sem rumo.
A "pele do rio" está tatuada com as vivências do eu lírico, lembranças revividas e renovadas a cada outono. Por meio do lirismo dessa cena poética o poeta nos proporciona também uma viagem à infância.
OUTONO DOS VERSOS
Argonauta poetrix
Navego imensidões
Rio das estrelas
O “Outono dos Versos” carrega a complexidade da composição de um poema minimalista como o poetrix, que se lança na imensidão do universo vocabular, a buscar as palavras certas para expressar a vastidão de sentimentos que habitam o poeta.
Navegante dos rios da poesia e de suas infinitas vertentes, José de Castro brinda-nos com o céu estrelado, feito as noites de Van Gogh, e seu argonauta, imerso na imaginação envolta em uma nebulosa, desvela os mundos possíveis e impossíveis que a poesia pode (re)criar.
OLHOS DE INFINITO
Medito na amplidão
Quantos outonos-luz?
Ainda é longe Aldebarã
Em “Olhos do infinito” percebi a mesma retina fatigada de Carlos Drummond de Andrade ao contemplar, incomodado, com “a pedra no meio do caminho”. O poeta contempla Aldebarã, a sua "estrela guia", a Estrela Alfa, impregnada de subjetividade. É a maior estrela da constelação de Touro, e tão indomável quanto a poética do autor, que ora transita entre o lirismo comedido e um neologismo composto por “outonos-luz”, ao estilo de Manuel Bandeira e sua Estrela da Manhã, ora entre a revolta involuntária, como em Clarice Lispector, cônscio do seu "lugar de fala”, em discursos poeticamente bem elaborados.
SEM UM ADEUS
Ao vento viajam os versos
São folhas velozes no tempo
Outono levou meu poema
José de Castro despede-se “Sem um adeus” e também evoca o senhor do tempo, Cronos, que é implacável em sua função de acelerar nossos dias e fazer com que a memória se torne seletiva e apague o que de menor importância vivemos. Ao contrário do que nos apresenta o eu lírico, o vento não leva o poema, ele o faz permanecer vivo a cada leitura, cada vez que alguém se encanta com seu sentido e toma para si as reflexões que ele suscita.
Com minha mente em estado de ócio contemplativo, em poucas horas de viagem em uma certa manhã de outono, voei também na imaginação, e esmiucei o outono particular de José de Castro. Na minha visão, nesses poemas com apenas título, três versos e trinta sílabas poéticas, o autor torna-se universal na expressividade do eu lírico.
Os poetrix aqui analisados proporcionaram-me o aconchego do frio ameno e dos dias ensolarados de céu anil dessa estação que representa o adormecimento do ciclo vital, de renovação de energias e de preparação para novas experiências. Tenho certeza de que causará o mesmo impacto em outros leitores!
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Guilherme de. Coedições ABL, poema XXXII, conhecido como Barco de Papel, 2008.
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 5a ed. São Paulo – Moderna: 2015.
Andrade, Carlos Drummond. No meio do caminho, publicado pela primeira vez, em 1928, na Revista de Antropofagia
Bandeira, Manuel. Estrela da manhã, in Coleção: Manuel Bandeira, 3ª edição, São Paulo, Editora: GLOBAL, 1936).
COLASANTI, Marina. A moça tecelã. (Traz bordados de Ângela, AntoniaZulma, Marilu, Martha e Sávia Dumont, sobre desenhos de Demóstenes Vargas), São Paulo: Global, 2004.
GOGH, Vincent Van. Noite Estrelada, óleo sobre tela, com 73 x 92 cm, atualmente no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMa).
HOMERO.Ilíada. Tradução e introdução de Carlos Alberto Nunes - 25a. edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. E-Book publicado pela Lê Livros (crônicas de 1967 a 1973, publicadas no Jornal do Brasil).
VERLAINE, Paul. Canção de outono(poema publicado pela primeira vez no livro "PoèmesSaturniens"),1866.
WHITMAN, Walt. Folhas de Relva. São Paulo: Hedra, 2011 (p.289).
11 comentários:
Foi um prazer investigar a fundo o sentido de cada poetrix do José de Castro! ❤️
Leio e releio a análise feita por Cleusa Piovesan... É surpreendente e bela a visão da autora para os poetrix de José de Castro. Um texto que oferece mais poesia à poesia presente nos poetrix. Um texto cheio de significados, de um olhar apurado e sensível. Brilhante!... Aplausos!!...
Acho que a Coluna Literária precisa ser mais visitada, mais falada ela é tudo de bom. Fiquei encantado com a leitura dos poetrix do José de Castro que a Cleusa fez. O poetrix é isso, sempre disse que ele vai muito além do que parece, ele não tem limite, ele não tem lado. Cada leitura é um achado, cada verso é um susto... E viva a poesia!!! Parabéns meus irmãos, vocês são feras demais...
Primeiramente, parabéns pela excelente análise Cleusa Piovesan. Teceste uma excelente análise em relação aos poetrix de José de Castro. Por si só esse gênero é um universo de interpretações. No entanto, consegue ir além e mostrar as relações intertextuais que estes estabelecem com outros textos. Dessa forma, consegue abrir uma nova cortina de interpretação a nós, leitores comuns e demonstrar o quão grandiosa é essa forma de fazer poema.
Quanta alegria em ver olhos tão perspicazes que fizeram uma leitura que amplia a mensagens dos Poetrix. Fiquei muito feliz com a análise feita e me senti também lisonjeado de ser colocado em comunhão com escritoras/escritores maravilhosos que também admiro. Gratidão, Cleusa... E que possamos seguir enaltecendo essa linguagem minimalista tão cheia de possibilidades de expressão poética. Um abraço, querida!
Sou só aplausos e felicidades! Concordo com as observações feitas aqui! Concordo com você Pedro!! Viva a poesia e o Poetrix!!
Surpreendente análise. Vasto mundo vasto o da Poesia. Parabéns Cleusa e De Castro.
Bela análise! Os poetrix de José de Castro são inspiradores e a Cleusa trafegou com maestria por seus versos. Parabéns!
Fico impressionada quando vejo um Poetrix se alongar tanto e tomar a proporção de um livro. Tem pessoas que conseguem compor Poetrix com esse poder e pessoas que conseguem ver e escrever coisas inimagináveis sobre esse pequeno poema. Minhas reverências aos dois autores.
Exposição certeira sobre as composições do grande poeta José de Castro.
Agradecemos a beleza🍀
Que belíssima análise dos poetrix desse mestre não apenas no poetrix, como na poesia de modo geral.
Cleusa demonstrou não apenas a capacidade de explorar a poesia nesses poetrix, como também seu conhecimento literário e sua sensibilidade como leitora e crítica. Parabéns ao Jose de Castro pelos belos poetrix, como também à Cleusa pelo texto rico.
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