30 de jun. de 2024

Desafio: Na Asa do Vento - José de Castro

 

DESAFIO: NA ASA DO VENTO

           

            Por José de Castro

 

“Deu meia-noite, a lua faz o claro
Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste.”
(Na asa do vento: João do Vale/Luiz Vieira)

 

            Viver é um desafio. A cada manhã, ao acordarmos, precisamos traçar o roteiro do filme a ser rodado no dia; e a trilha sonora, com músicas a ouvir enquanto atendemos a um extenso ritual:   roupas, comida, atenção à família, sair para o trabalho; visitas a amigos, shows a assistir, livros a ler, textos a escrever; pagar contas; responder e-mails e mensagens do zap; tempo para atividades físicas e também para estar em silêncio; meditar e refletir sobre a vida; expressar gratidão pela saúde, pelos amigos e pela oportunidade de contribuir para a recriação de um mundo melhor. Se aposentados, usar criativamente o tempo que agora nos desafia; tempo e saúde, dois bens preciosos. É recomendável traçar uma linha de ação e de condutas que expressem a complexidade do que somos, imaginamos ou precisamos ser. Viver é gerir o tempo com sabedoria.

            Um dos grandes desafios é seguir sempre em frente, faça chuva ou faça sol, sem ficarmos presos ao passado; ao mesmo tempo, sem muita preocupação com o futuro; o ideal é viver o momento e desfrutar cada instante em plenitude. Além disso, ter a capacidade de se reinventar.

            Para nós escritores, escritoras e poetas, a vida é sempre uma redescoberta. É a oportunidade de nos despejarmos de corpo e alma sobre o papel e inaugurar novos mundos ao retratar com emoção aquilo que habita a profundidade do nosso ser. Representa o momento mágico de criar poemas, contos, crônicas e pensar em histórias que poderão, quem sabe, se transformar em novelas ou romances. Tudo o que existe na face da terra pode virar matéria do fazer literário, seja prosa ou poesia.

            Entendo que o viver em estado de criação literária é um dos maiores desafios, pois significa uma entrega ao sublime. Aos olhos atentos, em tudo habita a poesia; e tudo pode virar poema ou  conto, seja a dor ou a fortuna, a sorte ou o azar, a tristeza ou a alegria. Podemos extrair lições preciosas dos nossos momentos de êxtase ou de melancolia; de nossas incertezas ou angústias. Todos os estados de espírito podem contribuir com a nossa escrita.

            Em decorrência, precisamos estar atentos para perceber as vicissitudes que nos confrontam momento a momento. E encará-las com determinação e coragem, sempre com um olhar perspicaz que as desvende e as ressignifique, fazendo-as dignas de constarem em nossa literatura.

            Um desafio, por exemplo, pode ser o de tentar escrever um texto literário com uma abordagem diferente, fora dos padrões costumeiros. Como seria ousar, se aventurar e brincar com as palavras e com os gêneros literários? Como escrever fora dos eixos tradicionais? Eis aí um bom exercício. Um texto criativo deve retratar coisas significativas para o público almejado. É recomendável encontrar palavras de relevância, significatividade e beleza, as que conseguirão prender a atenção do leitor e propiciar-lhe momentos de leitura prazerosa. Textos nascem para ser degustados e fruídos.

            Além do mais, importa ter em mente a necessidade de se escrever não só para adultos. Existem crianças e adolescentes a carecer de atenção literária. Há alguns anos escrevo para esse público, o que tem sido uma experiência gratificante e significativa para a minha aprendizagem.

            Ao mesmo tempo em que se busca a linguagem exata, leve, rápida, múltipla em sugestões de encantos e magia, aquela que tenha consistência de forma e conteúdo dentro do gênero escolhido,  adequada ao público pensado, podemos, simultaneamente, vislumbrar trajetórias prováveis dos nossos voos literários. É o momento de soltar a imaginação em busca dos nossos territórios. Seria reconquistar o horizonte perdido de Hilton? A Shangri-Lah, a Shamballa, ou as cidades invisíveis de que nos fala Italo Calvino? A utopia de Morus, a Pasárgada de Bandeira? Seria o recriar de mundos peculiares, traçar novas geografias, engendrar distopias?

            Em complemento, devemos reconhecer que somos humanos e temos sonhos próprios para além da própria literatura. Qual é o nosso principal desafio? Viver um grande amor? Economizar dinheiro? Reconquistar um amor perdido? Fazer as pazes com alguém? Deixar os fardos à beira do caminho e seguir com leveza? Aprender a perdoar a nós mesmos e aos outros? Ou seria estudar algum instrumento, descobrir novas habilidades, aprender a pintar, a dançar? Ou fazer uma viagem almejada há tempos; voltar ao nosso torrão natal e reencontrar amigos de infância?

            Às vezes, o que precisamos mesmo é pegar aqueles livros que estão na prateleira pedindo para ser lidos. Ou os que merecem ser relidos, da nossa autora ou autor preferidos. Ler e reler é sempre uma tarefa para a vida inteira. Nesse processo, realimentamos o espírito e aperfeiçoamos a escrita, espelhando-nos em quem nos precedeu.

            Ser escritor, escritora ou poeta, em si, já é um enorme desafio, uma vez que, de forma explícita ou subliminar, escrevemos sobre o que somos ou acerca dos nossos ideais de vida. Leva-nos a muitas reflexões, pois as personagens criadas trazem muito de nós mesmos. Nossos poemas espelham a subjetividade, os questionamentos e os sonhos que nos alentam.

            Não podemos perder de vista que, no limite, escritores, escritoras e poetas são senhores do espaço e do tempo. Na prosa comandamos o cenário, a época, os costumes, o querer e o devir das personagens. Somos donos de seus traços psicológicos e de seus destinos. Por sua vez, nos poemas  há um mundo inteiro a ser descoberto, um universo complexo e fantástico de emoções a ser explorado.

            Quer na poesia ou na prosa, um dos maiores desafios é passar autenticidade, uma visão peculiar que nos represente enquanto seres pensantes, portadores de uma determinada cultura e formação, detentores de experiências próprias e filosofia de vida, que se dispõem a trilhar os vastos mundos da fantasia e da imaginação.

            Há quem diga que não se escolhe ser escritor ou poeta, mas que a prosa ou a poesia nos escolhem. Talvez seja verdade que já nascemos com o DNA das palavras inscrito no sangue, a circular pelas veias, irrigando um existir de inquietações literárias que nos impulsionam vida afora.

            Na maioria de nós, a escrita, o poder e o fascínio que as palavras exercem, é pura compulsão, chamado, vocação. É feito um eco distante que não nos deixa sossegar enquanto não o atendemos. E tecemos uma crônica, um conto, um poema, ou mesmo um pequeno ensaio literário; ou haicais e poetrix, esses dois pequenos por fora e tão grandes por dentro. Bênção ou maldição, o chamamento da escrita nos fascina e costuma nos envolver por completo.

            Agora, uma recomendação. Não tenha pressa em enviar o seu texto para editoras ou publicá-lo imediatamente. Deixe-o descansar, controle a ansiedade e retome-o noutro momento. Como diria Cecília Meireles: “Destrói os olhos que tiverem visto/ Crie outros para visões novas.” Encare o seu texto com um novo olhar, releia e reescreva. Aprenda a cortar o desnecessário. Lapide, aperfeiçoe.

            Os que se entregam à fascinante arte de escrever, a qualquer hora do dia ou da noite, saibam que isso significa um diferencial importante na vida, a ser alimentado com muita leitura, com grande dedicação e prática cotidiana. E que se vislumbre também a resposta às perguntas: por que escrevo, qual é o sentido, o significado e a importância da minha escrita perante a vida? Que contribuição tenho a oferecer? Além disso, saber que a escrita é paixão e entrega.

            O saudoso Manoel de Barros, poeta das pequenas grandes coisas, afirmou que “Poesia é voar fora da asa”. E eu acrescento: poesia e escrita são como voar na asa do vento. É ciência própria de muita inclinação para o diferente, para a ousadia de seguir rumos que se descortinam ao longo do caminho.

            Daí a necessidade de se ter coragem e leveza para realizar esse voo cotidiano. É uma viagem que pode surpreender, pois muitas vezes nos avizinhamos de abismos desconhecidos. Mas não existe obstáculo impossível de ser transposto. Lembrem-se: nós, escritores e poetas, temos o “abre-te sésamo” de tudo, ostentamos o fiat criador da palavra que nos habita, liberta e abençoa.

            Então, mãos à obra. Encare o papel em branco ou a tela vazia do celular, do computador ou do seu notebook. E comece a viajar em seus desafios literários. Mantenha desperto o escritor e o poeta, ou a escritora e a poeta, que existem dentro de você. Reinaugure-se cotidianamente. Reinvente-se. Fio a fio, desfie os desafios. E voe na asa do vento.

 

José de Castro, AIP, cadeira 11.

 

18 comentários:

Margarida Montejano disse...

Texto maravilhoso, José de Castro! Admirável aula de voo sobre as palavras, sobre o tempo, sobre a vida! De mergulho sobre a linguagem escrita!
A quem escreve, uma reflexão sobre este ato libertador. A quem ainda não se aventurou nesta arte, um estímulo a escrever! A voar!
A produzir poesia, a sonhar palavras e a acordar com um texto clamando por existir.

Parabéns, Poeta!

Diana Pilatti disse...

Que lindo 🥹

Andréa Abdala disse...

Coragem e leveza, cuidado e sabedoria, ousadia e paciência... A arte da escrita requer além do DNA, merece sutilezas. Lindo texto! Merece ser lido e relido. Obrigada José de Castro!

José de Castro disse...

Gratidão, Margarida Montejano, Diana Pilatti e Andréa Abdala pela leitura. Este texto demandou várias escritas e reescritas. Nele, deixo entrever alguns toques sobre os valores de Italo Calvino, tema sobre o qual tenho vontade de escrever, pois acredito serem fundamentais para escritores(as) e poetas. Então, posso dizer: até a próxima.... Grande abraço!

Valeria Pisauro disse...

Querido mestre José de Castro, que reflexão linda! Escrever é uma revoada sem limites nas asas da imaginação. Parabéns, adorei!

Dirce Carneiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Dirce Carneiro disse...

Beleza e lições nesse texto literário, que ao mesmo tempo em que ensina, pratica.

Margarida Montejano disse...

Texto lindo, Andréa! Muito didático e convidativo à reflexão, o artigo de José de Castro! Vale compartilhar ♥️

José de Castro disse...

Mais uma vez retorno aqui para agradecer a leitura carinhosa das poetas Valéria Pisauro e Dirce Carneiro, com seus olhares generosos e amigos. Aqui aprendemos uns com os outros, nessa irmandade poética de ricas trocas de experiências. Aproveito também para agradecer à Diana Pilatti que compartilhou esse texto no Facebook. Gratidão sempre a todas vocês...

Anônimo disse...

Escrever é expressar, vivenciar cada momento, esse é único no existir.
Assim, conseguir se expressar é algo muito próprio, pois,muitas vezes, o que quero falar é tão meu, que fica...parece ser tão claro que acabo acreditando que o outro já entendeu.
É um desafio perceber o eu e o tu e, simplesmente, escrever seu pensar, seu sentir... e o outro penetrar, experenciar o seu texto.
Falei demais...virou um discurso!!

Bianca Reis disse...

Que texto gostoso e verdadeiro. Aguardo novos artigos, é sempre um prazer ler o José de Castro.

José de Castro disse...

Ow, Bianca... Obrigado pelo comentário delicado e precioso. Gosto destes seus bons olhos de leitora... Abraço afetuoso. (Arrumarei tempo para escrever mais.... Valeu!)

Anônimo disse...

Esse texto metalinguístico, como diria Drummond, "bateu na aorta" e denuncia sua paixão pela poesia. Amei a reflexão! ❤️

Pedro Cardoso disse...

Grande José de Castro, li e reli o seu texto. Obrigado por este incentivo, essa chama para a escrita. Sempre digo que escrever é um ato de loucura. Um desafio que brota da alma, um querer que não tem fim. Fico feliz por fazer parte desse grupo, dessa família. Um grande abraço e obrigado pelo texto.

Angela Bretas disse...

Uau ✍️ Simplesmente ótimo texto . Parabéns 👏👏👏👏

José de Castro disse...

Obrigado, Pedro Cardoso e Angela Bretas. Alegria em ter assento na AIP ao lado de vocês e tantos outros e outras poetas de valor. A poesia é um laço que nos une. Grande abraço a ambos...

Boveto Sandra disse...

Há dias que li esse texto, mas o blogger não me deixou comentar no momento.
Texto inspirado e inspirador. Quantos conselhos! Quantas frases não apenas de ler, mas aplicar na nossa arte.
Muitas lições. Obrigada, poeta! Parabéns pelo texto.

José de Castro disse...

Obrigado, minha querida amiga poetrixta Sandra Boveto... Aqui navegamos poesia juntos... Alegria em tê-la como amiga... Grande abraço.